Mais do que uma história de família, o texto a seguir recria cenários e costumes sertanejos: a lida no campo; o aboio do vaqueiro tangendo o gado; as vaquejadas… Um passado de memórias impregnado nas cercanias e terras da Fazenda Bom Pasto, propriedade situada no município de Serrinha, no Agreste potiguar e com história traçada a partir do início do século passado. Já naquela época, a relação entre homem e cavalo revelava muito da face de cumplicidade necessária para enfrentar as ranhuras do campo. Um animal de bom desempenho facilitava a atividade árdua e dificultosa nas caatingas fechadas e no trabalho diário de apartação. Começou assim um processo de evolução genética de eqüinos que culminaria com a tecnologia empregada para formação dos melhores cavalos de vaquejada do Brasil.
Quando o senhor Manoel Joaquim de Souza e sua mulher, Antônia Augusta se instalaram na Fazenda Bom Pasto, a pecuária permanecia como atividade econômica predominante na região. A localização da propriedade, próxima ao litoral, era vocacionada também À criação e manejo de cavalos. Era rota de retiradas de gado, que partiam de regiões mais secas para as úmidas. De tão freqüente os deslocamentos, a passagem desmatada com o tempo ficou conhecida como Estrada de Boiada. E não por acaso, também naquela região os vizinhos se reuniam para a pega do gado, no meio da vegetação caatingueira. Não havia cercas nem valos para delimitar as fazendas. Os bois caminhavam soltos no pasto. Geralmente ao final da estação chuvosa, os fazendeiros reuniam vaqueiros para pegar o boi e marcar com ferro as rezes, em uma verdadeira corrida de tártaros.
A marcação própria de cada fazendeiro servia para identificação do gado. O comum das ferraduras era a estampa da imagem da ribeira do rio mais próximo, de domínio conhecido dos vaqueiros. A tradição era marcar a figura da ribeira no lado esquerdo do animal. Na coxa direita do gado, era ferrada a marca do proprietário. A pega do boi foi a origem das vaquejadas de hoje. À época, eram praticadas sem arenas demarcadas. Os vaqueiros se embrenhavam no mato em cima de cavalos. Enfrentavam espinhos de juremas e touceiras de xique–xique. Demonstravam coragem, habilidade e força. Para melhor eficácia do trabalho, claro, era preciso cavalos ligeiros, valentes, de bom desempenho. E ali na Fazenda Bom Pasto os cavalos sempre foram bons na pega do boi, mesmo ainda sem raça definida.
Além do treinamento natural com a pega do boi, o velho Manoel Joaquim também conhecia e sabia observar um cavalo de valia. E teve a sorte de sua propriedade figurar como passagem comum para bandos de ciganos – tradicionais proprietários e conhecedores das habilidades dos cavalos. Por força da necessidade, andavam sempre com muitos e bons animais para enfrentar a rotina de viagens e mudanças. Também conhecidos como bons comerciantes, os ciganos sabiam reconhecer um cavalo de bom desempenho. A permuta de animais entre “seu” Manoel e os ciganos era constante. Essa troca produziu, com o tempo, os melhores cavalos da região.
Além de bons criadores de cavalo, os ciganos também ajudavam a propagar mitos e crendices populares relacionadas ao cavalo para lucrar no comércio. Uma crendice conhecida À época, relacionadas a sinais na pelagem do cavalo, prejudicou a muitos. Algumas ainda persistem até hoje. Segundo diziam, se o cavalo tivesse a crina tangida para o lado esquerdo, era um sinal ruim. Se tivesse o pé direito calçado, também. O argumento mais corrido era mais ou menos assim: “O cavalo com um sinal é bom. Com dois é melhor. Se for três é ruim. E quatro é pior. Cinco é um brinco. Seis é cavalo de rei, mas o que é bom não tem sinal nem cor”. Se as crendices enganavam outros, nunca foram referência para seleção de cavalos na Fazenda Bom Pasto. O critério, sempre muito arraigado aos costumes da fazenda, era mesmo o desempenho, independente da pelagem ou sinais.
A cria cuidadosa, a observação minuciosa e a procura pelos melhores animais durante décadas produziu cavalos valiosos na Fazenda Bom Pasto. Um exemplo ocorreu após a queda em uma vaquejada de um dos filhos de Manoel Joaquim, José Teixeira de Souza. Zezé de Souza, como era conhecido, preferiu desistir do esporte e vendeu o cavalo Paraíso − um mestiço de manga larga. Com o dinheiro, comprou uma propriedade vizinha À fazenda, em 1942. Desde antigamente o cavalo é cultuado como propriedade de valor. E a prova era vista nas ruas de nuvens de poeira, quando das vaquejadas ao ar livre, ainda sem fins lucrativos. A disputa era para ver quem colocava o boi mais pesado. Geralmente eram realizadas próximas À Igreja, nas festas do padroeiro do município. Se havia cercas eram formadas por curiosos, admiradores do esporte que se projetava.
Desde aquela época os cavalos da Fazenda Bom Pasto participavam e colaboravam com a valentia e virilidade dos vaqueiros − geralmente empregados de fazendeiros − a vencerem as vaquejadas de rua ou as festas de apartação. Eram um espetáculo À parte naquele cenário de plainos vibrantes, de bois Às marradas ou escavando o chão, em prolongados rumores de terremoto − uma prova legítima de habilidade e força, torneio sagrado de famas, motivo de cantadores que imortalizaram a façanha, como disse Cascudo, no livro Cantadores e Vaqueiros.
O costume das vaquejadas continuou entre vaqueiros da Fazenda Bom Pasto e os filhos de Manoel Joaquim, mesmo com o acidente de Zezé de Souza. A cria e a presença dos cavalos da propriedade nas vaquejadas, também. Sempre procurados por renomados criadores da região, os cavalos também eram comercializados. Praticamente todos os irmãos, filhos de “seu” Manoel, venderam cavalos de prestígio que logo se tornariam destaques em competições afora. Sempre com animais disputados, a Fazenda começava a ser vítima de roubos de animais, atividade facilitada também por ser a propriedade situada próxima a uma rota de deslocamento.
Dos roubos freqüentes se criou um costume espalhado para outras propriedades da região. O cavalo costumava dormir na baia do lado de fora da Casa Grande da fazenda. Na parede do quarto, com vista próxima para a baia, dois buracos próximos À janela para abrigar o cano de dois rifles. Quando havia suspeita de perigo botava–se milho seco ou uma mandioca inteira para ouvir o mastigado do cavalo. Ainda assim, cavalos eram roubados. Um deles foi Confeito, levado por ladrões da Paraíba e que originou um dos causos da Fazenda.
Conta–se que o capataz Cícero Anísio acompanhou Manoel Joaquim até a Paraíba em busca da propriedade roubada. Alguns dias de busca e acharam Confeito numa fazenda alheia. Trouxeram de volta o cavalo. O capataz trouxe também marcas de bala na barriga e no joelho, fruto de tiroteio no local. Precisaram tirar a bala da barriga. A outra permaneceu alojada no joelho de Cícero Anísio. Só muitos anos depois, numa manhã comum de lida na Fazenda, o capataz mostra satisfeito e surpreso o buraco da bala recém–largada do joelho ao surpreso menino Júnior de Souza, neto de “seu” Manoel. O corpo havia expelido a cápsula depois de décadas.
A terceira geração e a evolução genética dos animais
Com o passar dos anos as atividades na Fazenda Bom Pasto foram gradativamente passadas À terceira geração da família Souza. Em 1976, o neto mais velho de “seu” Manoel Joaquim, de nome homônimo, falece − um transtorno grande À família. Dois anos depois, aquele mesmo menino que viu assustado o buraco no joelho do capataz Cícero Anísio, assume o comando da fazenda. Aos 19 anos e com escritura pública de emancipação da Fazenda, José Teixeira Souza Júnior, conhecido como Júnior Teixeira, dá continuidade ao trabalho do avô e introduz a tecnologia necessária ao melhoramento genético dos cavalos, futuros campeões de vaquejada e cotados no principal ranking nacional da categoria.
Júnior Teixeira herdou os animais remanescentes da Fazenda. Mais do que isso: manteve os ensinamentos, a tradição na criação e procura por animais de bom desempenho, iniciada com o avô e continuada pelo pai, Zezé de Souza. Um dos conselhos do patriarca dizia: “é preciso paciência e tempo para melhorar o cavalo. O principal a se trabalhar é o juízo do animal. A cor (pelagem) e o tamanho (porte) é o mais fácil de fazer: se muda a hora que quer. Só precisa de uma cruza. O difícil é fazer um cavalo de vergonha. Essa não se empresta, o cavalo nasce com ela”. Esse resgate da linhagem do bom cavalo de vaquejada foi sendo colocado no plantel da Fazenda a partir de 1978. Apenas animais testados e aprovados em vaquejadas eram separados para a reprodução e garantia do melhoramento genético dos animais.
Projetar um cavalo preparado para a vaquejada é um trabalho oneroso e requer dedicação, observação e conhecimento de linhagem e pedigree. O cavalo de vaquejada é diferente. As atividades que ele executa são específicas. Precisa reunir qualidades primordiais de outras modalidades para ser completo. Velocidade, senso de lida, ser dócil na rédea e gostar de boi são as características essenciais. O cavalo de rédea precisa de bom domínio do cavaleiro. O de corrida carece velocidade. O cavalo de conformação precisa morfologia próxima do padrão de quarto de milha. Já ao cavalo de apartação é necessário um bom senso de lida.
Para montar um cavalo com todos esses pré–requisitos, Júnior Teixeira iniciou pesquisa e buscou pedigrees históricos, de linhagem antiga para incorporar ao plantel da Fazenda Bom Pasto. Devido À dificuldade de apresentar um cavalo completo, geralmente os garanhões e éguas só conseguem apresentar uma prole aprovada nas vaquejadas já em idade avançada, entre 12 e 20 anos. E foi com muita paciência e trabalho que o resultado, aos poucos, foi aparecendo. À época, não existiam estatísticas para desempenho de cavalos em vaquejada. Mas os animais da Fazenda Bom Pasto já gozavam de prestígio junto aos vaqueiros. Geralmente saiam vencedores das vaquejadas.
Alguns cavalos se tornaram célebres À época: Shady Apolo Bars, Eternally Fred, Alamitos Lad… Mas um deles foi o responsável por uma linhagem histórica de cavalos vencedores de vaquejada: Príncipe Rojo. O cavalo chegou Às mãos do advogado e fazendeiro Francisco Jacinto, em Presidente Prudente, São Paulo. Foi adquirido no King Ranch americano. A direção do local abriu exceção para o filho de Jacinto, João − participante costumeiro de rodeios universitários nos Estados Unidos − e vendeu o potro fora do leilão, em 1970. Príncipe Rojo foi escolhido entre dois potros. Foi uma das primeiras importações da raça quarto de milha no Brasil.
Príncipe Rojo foi usado na produção de cavalos de lida. Cruzou com muitas éguas poconianas (éguas de poconé) para atender Às necessidades da fazenda de Francisco Jacinto. Alguns dos filhos do cavalo foram levados a Pernambuco pelas mãos do agro–pecuarista e desportista de vaquejada Laerte Pedroza. A chegada dos animais revolucionou as vaquejadas no Nordeste. O mais célebre dos filhos de Príncipe Rojo foi Latino Rojo − famoso porque o vaqueiro Piteta derrubava bois segurando apenas na crina do animal, sem usar os arreios. Outro famoso foi o irmão de Latino, o Xodó, e mais recente, o Double Rojo, pertencente À família do médico e agro–pecuarista Sérgio Lamartine, proprietário de fazenda em Monte Alegre − o primeiro a incorporar a linhagem de Príncipe Rojo no estado potiguar.
Por essa época, Blob Rojo, do agro–pecuarista álvaro Aureliano também se destacou. Somente nos anos 90, o Thunder Chief, também filho de Príncipe Rojo, chegou À Fazenda Bom Pasto e atualmente é o top ten do ranking da Associação Brasileira de Criadores de Cavalo Quarto de Milha (ABQM) − o principal parâmetro de estatística da categoria no Brasil. Ainda da mesma linhagem de Príncipe Rojo, surgiu outros campeões nacionais, como seus filhos Copy Rojo JR, Shalon Rojo RJ, Quarter Rojo JR e Belle Rojo JR, todos eles, crias do Haras Bom Pasto.
A compra forçada que mudou os rumos do Haras
Em sua busca pela excelência na linhagem dos cavalos e pedigrees históricos, Júnior de Souza já havia tomado conhecimento da existência de Príncipe Rojo, na fazenda de Francisco Jacinto e tentou por várias vezes comprar éguas filhas do disputado cavalo. As tentativas foram em vão. As fêmeas sempre foram muito reservadas aos critérios do fazendeiro. As ofertas eram mais endereçadas Às netas de Príncipe Rojo. Até que um triste fato mudaria essa história e acrescentaria melhor qualidade À criação do Haras Bom Pasto: a compra inesperada de cinco filhas do Príncipe Rojo: Xuxa Rojo, Miss Surething Rojo, Cindy Princess, Ride Steel e Super Dooper Rojo.
Um amigo de Júnior Teixeira, Marcos Gerot, residente em Presidente Prudente era quem intermediava os negócios da fazenda de Francisco Jacinto. Foi ele quem contatou o comandante do Haras Bom Pasto com a oferta das éguas. Mesmo sem acreditar totalmente na história, amparado pelas tentativas anteriores, Júnior Teixeira viajou a São Paulo e foi recepcionado pelo amigo, já com os registros dos animais. Júnior Teixeira escolheu quatro éguas das nove que dispunham.
Para maior surpresa, o veterinário Odécio Curral informara só vender todas as éguas, em razão da morte de duas filhas do fazendeiro, uma delas participante ativa de provas de vaquejada. O pai, João, passou tempos sem visitas À propriedade para evitar lembranças da filha. Se qualquer égua permanecesse na fazenda, as recordações seriam também dolorosas. Júnior Teixeira comprou as nove éguas descendentes de Príncipe Rojo quase forçosamente. Eram as melhores da fazenda. Três delas estão com mais de 20 anos hoje, mas ainda reproduzem e são responsáveis pela produção de grandes cavalos do Haras Bom Pasto.
Outro cavalo também revolucionou vaquejadas
Outro cavalo importante no pilar de formação do cavalo de vaquejada foi o Eternally Fred, importado pelo criador e ex–presidente da ABQM, o paulista Sérgio Noguês. O cavalo é filho de uma égua campeã em provas de rédea nos Estados Unidos, a Fred’s Kitten e que entrou na reprodução em idade avançada, tendo deixado apenas o Eternally Fred como herdeiro da raça quarto de milha. Sabe–se que produziu outro filho, registrado na raça Apaloosa. O Eternally Fred, de pelagem baio amarilho, não se projetou como garanhão nas outras modalidades em que seus descendentes foram testados. Já um cavalo de meia idade, se firmou como produtor de cavalos de vaquejada. Depois foi vendido ao Nordeste para servir Às éguas e produziu cavalos importantes, como o Eternal Power, Shady Steel SLN, Eternal Steel FB, Ebby Steel SLN, Miss Eternal Bars HTR e outros.
Após a morte de Eternal Power, Júnior Teixeira fez uma busca no Brasil, em meados da década de 90, para encontrar irmãos próprios do cavalo. E encontrou. Seria outra compra valiosa para a Fazenda Bom Pasto. Inicialmente adquiriu o Ebby Steel SLN, da qual foi produzido um campeão nacional de vaquejada: Jamel Steel JR. Posteriormente comprou outra irmã própria de Eternal Power, Miss Eternal Bar, que produziu um reservado campeão nacional, Shalon Rojo JR. Em seguida, um macho, Shady Steel JR, que se tornou, atualmente, líder de estatísticas de campeões produtores de vaquejadas, hoje com 16 anos.
Desempenho sempre foi princípio na Fazenda Bom Pasto
O critério de seleção sempre foi marca na Fazenda Bom Pasto. A partir de 1978, o desempenho dos cavalos foi melhorado de maneira substancial, fruto de pesquisas e conhecimentos adquiridos e repassados entre gerações. O resultado de décadas de muito trabalho era testado e aprovado nas pistas de vaquejada e, mais tarde, foi comprovado pela ABQM, sobretudo nas estatísticas como melhor criador de cavalos de vaquejada, além de outros títulos importantes como produtor do primeiro Campeão Nacional de vaquejada e, por dois anos consecutivos o melhor criador do Circuito ANQM de vaquejada.
Os títulos são reconhecimentos ao trabalho de melhoramento genético praticado com afinco e prazer pelos que fazem do Haras Bom Pasto um dos grandes produtores de cavalos de vaquejada do Brasil, sempre em destaque no ranking nacional. Hoje a Fazenda conta com três garanhões entre os 12 melhores do país: o Shady Steel JR, o Thunder Chief e Solano Grey. O cavalo mais pontuado da classe aberta é o Solano Ligeiro JR, cria do Bom Pasto. A fêmea mais pontuada em vaquejada em 2007 foi a Miss Peppy Steel JR, também cria do Haras.
Hoje o Haras Bom Pasto dispõe de um material genético de alta qualidade, testado e aprovado em vaquejadas. Aliado a isso há também uso da tecnologia de última geração voltada À inseminação artificial, transferência de embriões e À comprovação precoce das proles de seus garanhões e matrizes. São alternativas viáveis de acelerar a criação de cavalos − um processo reconhecidamente lento e que exige paciência. Mas, antes de tudo, o que prevalece no Haras Bom Pasto é a relação com seus clientes. O espírito de criador sobrepõe ao espírito mercador. Daí a vantagem em investir nos animais da fazenda. A venda do cavalo em si é conseqüência de uma atividade realizada com prazer e cuidado ao longo de décadas de um trabalho criterioso de seleção, persistência e luta.